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Voltar Doutora em antropologia fala sobre trabalho doméstico na pandemia

A categoria das trabalhadoras domésticas é particularmente vulnerável durante a pandemia do novo coronavírus.

11/05/2021 - A categoria das trabalhadoras domésticas é particularmente vulnerável durante a pandemia do novo coronavírus. Estão expostas sem poder se isolar e são, muitas vezes, vítimas de abusos, como a obrigação de dormir no local de trabalho para evitar contaminar os empregadores.

Para falar sobre o trabalho doméstico durante a pandemia, o quadro Entrevista da Semana da Rádio TRT FM 104.3, da 23ª Região (MT), traz a filósofa, advogada e doutora em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Pará, Sandra Lurine.

O bate-papo foi ao ar nesta segunda-feira, dentro do programa TRT Notícias, e pode ser acompanhnado ao longo da programação da emissora. Para ouvir, basta sintonizar a frequência da rádio (104.3MHz na região metropolitana de Cuiabá) ou acessar o endereço www.trtfm.com.br. Também é possível ouvir através dos sites CX Rádio, Tudo Rádio, entre outros serviços semelhantes.

Confira os principais trechos da entrevista:

Diante de relatos até de cárcere privado, de patrões que obrigam funcionários a dormir no emprego em razão do novo coronavírus, como você avalia o momento que essas profissionais vivem?

Essas situações nos mostram o nível de precarização dos vínculos trabalhistas dessas trabalhadoras domésticas. É preciso nos perguntar quem são as mulheres que realizam esse tipo de trabalho. Historicamente, quem realizava esses trabalhos de cuidados na casa eram as chamadas mucamas.

As negras escravizadas trabalhavam em duas frentes. Umas trabalhavam na lavoura, sem qualquer distinção com o trabalho masculino, e as outras eram mucamas, mulheres que realizavam o trabalho doméstico, incluindo amamentação.

Após a abolição da escravidão, a população negra não foi inserida na nova ordem jurídica e social. Muitas vezes, essas mulheres continuaram a realizar esse trabalho doméstico em troca de um prato de comida. A sociedade tem um histórico de não ver essas mulheres como uma categoria de trabalho.

A abolição formal não alterou a mentalidade dos costumes, de continuar vendo essas mulheres como sujeitos que não tem outra possibilidade de inserção social, a não ser o trabalho doméstico. Essa mentalidade permanece no imaginário social.

Pessoas escravizadas sequer eram vistas como humanos. Essa mentalidade, implicitamente, ainda permanece na sociedade. Então, hoje, muita gente ainda pensa que pode manter uma pessoa presa, realizando esse trabalho, porque ela está aqui para servir. Vou mantê-la aqui porque quem vai realizar o trabalho doméstico?

Essa é uma característica intrigante da classe média brasileira. Essa impossibilidade da pessoa pensar que o trabalho doméstico pode ser realizado por qualquer pessoa. Na mentalidade do brasileiro, precisa ser uma mulher e, quase sempre, uma mulher racializada. Essa é uma mentalidade que vem se perpetuando desde o período de escravidão.

Quais as consequências dessa mentalidade?

O primeiro óbito oficial por covid-19 no Brasil foi de uma trabalhadora doméstica. A patroa veio de uma viagem ao exterior e, mesmo sabendo que estava com covid, não dispensou essa senhora com mais de 60 anos e com comorbidades que trabalhava em sua casa e que contraiu o vírus. A patroa se recuperou por ter acesso aos meios de saúde e a trabalhadora veio a falecer.

O caso da trabalhadora Mirtes, mãe do menino Miguel que morreu ao cair de um predio onde a mãe trabalhava, em Recife, também foi emblemático e chama atenção em alguns aspectos. Primeiro, por contrariar as recomendações da OMS de liberar as pessoas para o isolamento social. Contrariando também as recomendações da OIT que recomenda as adaptações nos serviços aos que fossem considerados essenciais.E contrariando ainda uma nota técnica do MPT que recomendava a dispensa, com remuneração, das trabalhadoras domésticas.

Mas o que vimos no Brasil? Um show de horrores! Vimos a disposição dessas trabalhadoras.

O caso da Mirtes nos chama atenção por alguns detalhes.Ela é uma mulher que está em uma estatística volumosa, de mulheres que criam seus filhos sozinhos. E nessa estatística de mulheres há um quantitativo majoritariamente de mulheres negras.

Além do fechamento das escolas, essas mulheres, muitas vezes, não têm uma rede de apoio familiar, coisa muito comum na trajetória de mulheres negras e pobres. Não tendo com quem deixar seu filho, mas tendo que ir trabalhar, leva o filho para o trabalho. É uma dupla exposição.

No caso de Mirtes, ela também não poderia deixar o filho com a mãe dela, já que esta também era uma trabalhadora doméstica. É interessante esse traço intergeracional do trabalho doméstico.

Os dados da pandemia nos mostram que os trabalhadores mais afetados pela pandemia foram as trabalhadoras domésticas. Quase 70% da trabalhadoras domésticas do Brasil não tem vínculo formal. Essa informalidade fez com que os empregadores que dispensaram as trabalhadoras, não mantivessem a remuneração.

Quase 45% dos empregadores de diaristas dispensaram sem qualquer renda. Em razão disso, essas trabalhadoras se submeteram a ir trabalhar, colocando em risco sua própria vida e de quem fica em casa.

As trabalhadoras domésticas, em razão desse trabalho não ter alcançado um reconhecimento social, também não são reconhecidas. São vidas precarizadas.

O filósofo italiano Giorgio Agamben fala que estas pessoas são "vidas nuas". Essas vidas que podem ser matadas, descartadas, que não são vidas que adquiriram valor perante a sociedade.

Considerando o histórico do trabalho doméstico, que ao longo do tempo foi realizado por mulheres negras, e pessoas negras sequer eram vistas como seres humanos, um pouco dessa mentalidade continua. Ao ponto das pessoas não terem qualquer preocupação com a vida dessas mulheres. Vários casos revelam isso.

Dizem que o vírus é democrático porque atinge a todos. Mas os efeitos do vírus não são democráticos, pois afetam sobremaneira determinados sujeitos que já estavam em situação de vulnerabilidade antes da pandemia.

A pandemia foi uma lupa para olharmos melhor nossa realidade, em especial para refletir sobre as condições das mulheres que fazem o trabalho doméstico no Brasil.

O empregado doméstico é protegido pela lei complementar 150/2015 que assegura direitos à categoria. Essa lei é suficiente?

Essa lei é um avanço.  O trabalho doméstico só foi reconhecido em 1988 como categoria laboral, portanto, quase sete décadas depois de já ter uma legislação trabalhista, que é a CLT, mas que não incluía o trabalho doméstico. Em 88 entra na Constituição Federal no parágrafo único do artigo 7. Isso em razão da luta do movimento feminista e do movimento negro para que esse trabalho fosse reconhecido como categoria laboral como as outras formas de trabalho.

Desses 34 incisos do artigo 7 da CF, apenas 8 ou 9 foram extensivos aos trabalhadores domésticos. A Constituição inclui, mas estabelece uma relação assimétrica com outras formas de trabalho.

Essa lei é um avanço porque traz outras garantias. Até 2006 essas trabalhadoras não tinham direito a férias. Com essa legislação, se estabelece também horário de trabalho.

O grande problema é a eficácia da legislação. Se o trabalho doméstico é realizado no ambiente privado, quem fiscaliza?

Em torno de 70% das trabalhadoras domésticas estão ainda na informalidade. Quem fiscaliza a forma com que é realizado? Só 32% das trabalhadoras domésticas no Brasil conseguiram ter carteira assinada, ter recolhimento de previdência. Como estas mulheres vão se aposentar se não há uma fiscalização em torno dessa lei?

A lei é muito boa. É um grande avanço. Fruto de muita luta.

 Quando veio à baila a discussão da PEC da doméstica, vimos manifestação de chantagem econômica. Falaram, por exemplo, que a lei, apesar de boa, iria gerar muito desemprego. Os empregadores não teriam como suportar essa carga de direitos a essas trabalhadoras.

Isso porque sempre se negou que esse deveria ser um trabalho regulado em lei. E tem muito ainda desse discurso de que isso vai quebrar o empregador e gerar o desemprego em massa. Muitas trabalhadoras, já se adiantaram a isso e concordaram em não assinar carteira para não perder o emprego.

Ou seja, a vulnerabilidade social é tão grande que faz com que as pessoas se submetam à precarização.

Mas sim, é uma lei importante que traz direitos duramente perseguidos historicamente. Mas fica um vazio na efetividade desses direitos. Como é difícil fiscalizar, fica muito a cargo da consciência moral desse empregador.

A profissional pode ser obrigada a dormir no emprego em razão da pandemia? A recusa pode gerar demissão por justa causa?

Não pode ser obrigada. Temos que lembrar dos direitos trabalhistas dessa trabalhadoras. A jornada é de 8 horas diárias, o que passa disso é hora extra. E se ficar à disposição após às 22h já é adicional noturno.

Ela não pode ser obrigada a permanecer após sua jornada de trabalho, sob pena de poder recorrer e fazer jus a hora extra e até adicional noturno.

E se ela concordar em ficar para não ter que se deslocar e evitar riscos para si? Se houver assentimento, e, uma vez que ela de fato concorde, não deve estar à disposição do empregador após a jornada de trabalho. Não pode ser solicitada a fazer nenhuma atividade. Se fizer, configura hora extra.

Se não quiser ficar, jamais poderá ser demitida por justa causa. Até para realização de hora extra é preciso ter o aceite trabalhadora. Não pode ser obrigada a fazer carga extra de trabalho, mesmo pagando.

O Brasil tem mais de 6 milhões de trabalhadores domésticos. O que é preciso fazer para proteger os direitos trabalhistas dessas profissionais?

Precisamos avançar muito. Sabemos que só uma legislação não é suficiente para alterar uma realidade. É preciso reconhecer a importância do trabalho doméstico. Na divisão sexual do trabalho, o trabalho produtivo historicamente foi realizado por homens. E o trabalho de cuidados, o trabalho reprodutivo, que inclui o trabalho doméstico, historicamente foi realizado por mulheres.

Quem são as mulheres que predominantemente realizam esse trabalho reprodutivo? Mulheres negras! E sem esse trabalho reprodutivo não tem o trabalho produtivo.

Eu só realizo meu trabalho de docente, porque há outra mulher que realiza o trabalho reprodutivo na minha casa. Eu dependo disso.

As feministas, quando brigavam pelo direito de ter espaço na esfera pública e ter ascensão ao mercado de trabalho, só fizeram isso porque outras mulheres ficaram responsáveis pelo trabalho doméstico.

É preciso reconhecer a importância desse trabalho. Reconhecer a importância das mulheres que realizam esse trabalho. E a importância de fazer com que essas normas se tornem eficazes.

O ponto central é a mudança de mentalidade que o brasileiro conserva. Existe uma construção social sobre mulheres negras de que são corpos destinados a esse tipo de trabalho. São sujeitos que merecem ser respeitados, que merecem ter seus direitos trabalhistas respeitados.

Em Belém (PA) houve uma grande polêmica durante o lockdown, quando o prefeito incluiu o trabalho doméstico como essencial. Teve uma reação da sociedade civil e foi retirado.

É muito contraditório, para não dizer irônico, que nesse momento é considerado essencial, mas na hora de reconhecer direitos não figura como essencial.

É essa mentalidade da classe média brasileira de que não pode lavar sua roupa, seu banheiro porque alguém inferior deve realizar esse trabalho desqualificado.

Para começar a mudar essa realidade é importante refletir sobre as raízes desse trabalho e mudar a nossa mentalidade sobre esse trabalho e sobre os sujeitos que realizam esse trabalho. Em regra, mulheres, racializadas e sem instrução.

Quanto mais desigual uma sociedade, maior o número de trabalhadoras domésticas. Não é demérito nenhum ser trabalhador doméstico, é uma categoria como qualquer outra. Precisamos mudar a mentalidade em relação a isso.

Fonte: TRT da 23ª Região (MT)

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